Abandonei meu carro, hoje pela manhã. Eu assumo, fui eu e pronto! Afinal era só um carro. Quero começar a caminhar para perder uns quilinhos. Além disto, está na moda esse negócio de não ser materialista. Já posso até imaginar os benefícios de um bom passeio ao ar livre, o cheiro da fumaça, o barulho da mobiletes, os “pit-bulls”, os assaltos. Amanhã de manhã já vou começar minha nova rotina. Eu já cansei de estar isolado do mundo dentro de um carro com ar-condicionado, música erudita, estofados macios, vidros elétricos, enfim, no mais absoluto conforto, certo de que em vinte minutos estaria em meu trabalho, para mais um dia que começara com chave-de-ouro.
A quem eu quero enganar? Ah, meu carrinho...por que fui lhe deixar? Não aprendi a valorizar todos nossos bons momentos. As viagens, as lavagens, as mulheres cheirosas que levamos. Em todas aquelas noites gloriosas você nunca me deixou na mão. Mesmo “no prego”, quando lhe empurrava ladeira abaixo, você nunca buzinou, mas sempre tocou “drive my car” dos Beatles.
Estou trocando tudo isso por uma imposição. Só porque você está velho. Como sou insensível! O que foi que fiz? Onde está o aliciador de carros? Mas não adianta chorar. Vou ter que me conformar com a lembrança de suas calotas, seus faróis de milha verdes, sua direção e manopla importadas, seu freio hidráulico, seu tapete preto. Depois de tudo só me resta andar, andar, andar. Que maravilha, agora sou um atleta! Sou campeão mundial de caminhada, mas não sei nem por onde ir. Eu juro, meu carro ia sozinho. Ele sabia o caminho. Eu ficava só dobrando. Outro dia, como ainda não estou acostumado a andar a pé (apesar de tudo) atravessei o sinal junto com os carros como me era de costume, e bati com a cabeça num poste já meio bambo de outras colisões provocadas por mais gente como eu. Gente que quebra a cara até aprender. Pessoas sedentas por mudanças, buscando fazer seus pequenos milagres, com o jeito de mais um carro desgovernado, que engarrafa nossa cinza cidadezinha.